A chuva caía forte, constante, determinada a me fazer prisioneiro do último fim de semana de férias que me restava.
Meus olhos insistiam em procurar o que havia além da chuva, mas na região onde eu morava era impossível ir além dos penhascos, caso eu me aventurasse a sair. O quarto de brinquedos era única opção para o menino mimado e rico que eu era.
Eu nunca tive muitos amigos, não porque eu era chato; porque as pessoas não me pareciam muito interessantes depois de cinco minutos de conversa. Elas jamais entenderiam minha aversão natural a coisas vivas.
O tédio ainda ia me sufocar se eu não tomasse alguma providência.
Comecei a vasculhar ao redor, abri meu velho baú de madeira cheio de lego, depois segurei o Darth Vader e o abandonei novamente à escuridão do baú. Havia um jogo de xadrez, mas, eu não fazia questão de jogá-lo, já que, para isso, eu precisaria estar acompanhado, e o devolvi de volta à pilha de jogos. Nem toquei no meu Ipad porque os jogos já haviam sido finalizados. Cansado de procurar, concluí que só havia uma solução: abandonar os brinquedos inúteis e visitar novamente meu lugar preferido da casa.
O meu lugar preferido da casa era o porão. Era lá que haviam os jogos mais excitantes.
Saí do quarto, deixando a luz acesa e desci as escadas, em busca do meu baú de tesouros.
Vi meus pais na sala mexendo a boca e me olhando, como se eu estivesse mesmo interessado em ouvir de novo que havia comida na geladeira, que eu tinha que apagar as luzes, que os números de emergência estavam todos na geladeira, blá, blá, blá.
“Tudo bem, mãe. Também te amo. Divirtam-se.” Resposta automática de filhos entediados para pais ausentes.
Afastei-me ansioso para abrir logo a porta que me levaria a meu mundo secreto.
Encontrei as chaves bem ao lado da porta, penduradas em um chaveiro cheio de casinhas ridículas e flores. Elas sempre estavam ao meu alcance, já que meu pai usava o porão para trabalhar com suas ferramentas e brinquedos.
Eu também tinha os meus.
Minha principal diversão eram os bonecos fantoches. Eu amava fantoches! Como era prazeroso controlá-los e fazer deles meu pequeno exército de escravos!
Sempre que eu criava um novo fantoche imaginava como seria estabelecer meu próprio reino. O reino onde eu nunca ficava entediado e podia controlar tudo e todos.
O poder da diversão consistia no controle. Eu não tinha dúvidas disso.
Inalei a poeira e o cheiro de mofo que sempre surgiam quando a porta era aberta, desci as escadas ainda no escuro e tateei, como de costume, encontrando o interruptor e ligando-o.
A luz meio amarelada revelou um ambiente acolhedor, lotado de caixas com objetos velhos, como uma vitrola e uma mesa ouija, um sofá e uma prateleira com livros variados.
Quando eu precisava de silêncio para estudar eu me enfiava nesse porão e permanecia ali, até sentir que as pessoas podiam aproveitar minha presença de novo.
No outro canto estava meu baú dos tesouros. Abri-o e logo me veio a deliciosa nostalgia de memórias antigas, onde, num verão muito quente, conheci uma de minhas babás. O nome dela era Cinthia. Depois veio a Carol. Lembranças.
Dentro do meu baú haviam fotos de pessoas que amei, mordaças, cordas, uma câmera com filmagens de minhas férias, meu diário, algumas ferramentas e o meu item favorito: uma máscara de porcelana.
Eu sempre me divertia quando a colocava e corria atrás das pessoas. Eu não sabia o nome do que eu via nos rostos das pessoas quando eu fazia isso, mas era divertido vê-las com os olhos arregalados e suspirando.
Toquei em sua face, deslizando os dedos e depois ergui-a. Experimentei-a no rosto mas removi, surpreso com a sensação de divertimento.
Geralmente, eu ficava em paz nesse lugar tão mofado e com pouca luz, um lugar que colocava qualquer um para correr, mas hoje, nessa noite tão chuvosa, tive o ímpeto de vasculhar um pouco mais.
Sempre haveriam surpresas para um bom explorador.
Eu era um excelente explorador.
Até aquela noite eu não confiava tanto assim na minha capacidade de inventividade, até que eu o encontrei.
Parado ali no canto esquerdo, no meio de uma bagunça de brinquedos velhos, trapos e bonecas de pano, eu vi um par de olhos enormes e uma boca sorridente me encarar.
O boneco estava imóvel. Seu macacão jeans e seus tênis vermelhos eram muito parecidos com uma roupa que eu usava para ir à escola ás vezes. Uma roupa que me fazia me sentir um otário.
“Oi. Seu... bostinha. Seu nome agora é Luke. Você é meu novo fantoche.”
Dei risada quando o boneco virou a cabeça para o lado, depois piscou.
“Oi. Seu bostinha. Meu nome é Luke.” O boneco respondeu de prontidão.
Irônico seria se ele não respondesse, já que ele tinha um fone bem na sua barriga. Era um maldito boneco falante.
Só que ele não repetiu o que eu disse. Ele me respondeu como se tivesse vida própria.
E como se tivesse vida própria, um som de estática começou a chiar através da boca do boneco.
Seus olhos brilharam por um segundo e me hipnotizaram.
“Vamos brincar?” Mais chiados de estática. “Vamos fazer um jogo.” Mais estática. “É só correr e... esconder.”
Dali em diante eu faria tudo o que tivesse vontade.
Uma luz surgiu dentro de mim. Minha mente fora iluminada por uma força impactante e preencheu minha mente com imagens mais do que provocantes.
Era como ver um filme onde eu era a estrela. Eu era o protagonista. O rei!
Como a porta estava aberta, ouvi a babá chegar.
“Luke! Luke! Cheguei!”
Subi correndo, deixando para trás a sensação gelada de solidão.
Bem que eu podia pregar uma peça nessa piranha, pensei.
Segurando o boneco Luke, corri para a parte superior da casa para surpreendê-la.
Não respondia à sua voz, sabendo o que fazer para garantir a diversão.
Deixei que Bárbara, a babá me procurasse até se desesperar. Sua voz de choro estava começando a me irritar.
“Luke! Onde você está? Não tem mais graça! Seu bostinha!”
Sua piranha.
Meu plano começou mesmo quando vi que Barbie, a babá sentou-se novamente no sofá em frente à tv, na qual passava uma série para meninas ricas e populares. Caminhei sem barulho até atrás de sua cabeça loira e a cutuquei com um dedo. Então me escondi.
“AAAh!” Barbie, a babá chiou. Repeti o movimento, mas dessa vez, ela se virou quando a toquei. “Ah! Seu canalha! Por que não me respondeu quando chamei? Já fiz sua pipoca e olha só! São onze e meia, acabou seu tempo e...” Cacarejou a babá.
Esperei por uma reação mais intensa, porém, falhei no plano que havia criado. Andei até a cozinha, fingindo que ia pegar minha pipoca e me escondi atrás do balcão.
Como Barbie não apareceu, esperei mais.
Esperei tempo o suficiente para saber que havia algo errado com a babá.
Eu devia verificar? Ou Barbie, a babá ia se vingar com alguma travessura?
O silêncio estava me impulsionando a sair. Caminhei lentamente e com cuidado até a sala, procurei por Barbie e ouvi um grito agudo.
Corri na direção do som mas eu não a via.
A sombra na parede denunciou sua localização. As escadas...
Eu estava indo em direção ao porão quando notei que a porta da sala estava aberta. Barbie pretendia fugir? Do quê?
Corri.
Voltei novamente para dentro da casa. Eu não ia perder meu tempo procurando pela babá. Ela que fosse embora.
Tranquei as portas e continuei na cozinha, observando a chuva que ainda caia impiedosamente. Barbie não poderia fugir. Se ela o fizesse, estaria morta em alguns minutos. Por sua própria burrice. Me concentrei na certeza de que Barbie estava me zoando e me acalmei.
Antes que eu pudesse repensar meu plano para capturá-la, ouvi novamente um barulho. Passos. Depois, um grito forte que murchou até virar um lamento.
“Aah! Aah... por favor, não... você... menino bom...”
O som de algo pesado batendo contra o chão me forçou a levantar a cabeça para tentar olhar através da porta da cozinha.
Com alguma dificuldade, uma mão pequena segurava uma faca de cozinha e a balançava no ar, golpeando o corpo jovem e frágil de Barbie, que jazia sem poder algum de reação.
A cor do sangue era magnífica.
Confesso que, apesar de toda sujeira, o sangue era uma substância muito bonita, atraente.
Ao lado do corpo ensanguentado de Barbie, o boneco Luke me olhava com seu perpétuo sorriso irônico. Ele abandonou a faca, que caiu no chão e manchou ainda mais de vermelho o tapete caro de mamãe.
Eu me aproximei de meu boneco, segurei em sua mãozinha pequena e o abracei. Segurando-o forte, levei-o de volta à seu dormitório, o porão, e tranquei-o no baú.
Reencontrei o corpo de Barbie, dei uma boa olhada para seu rosto sujo de sangue e me aproximei. Lambi seus lábios e senti o gosto de seu sangue recém derramado.
Segurei seus braços e a arrastei para perto das escadas, então, joguei seu corpo lá.
Barbie ficaria ali para sempre no lugar ao qual ela pertencia: o meu parque de diversões. Junto com os outros fantoches. Assim ela me divertiria para sempre.
Subi as escadas, entrei em meu quarto ainda com a luz acesa e voltei a olhar a chuva. Eu não estava mais entediado!
Antes de dormir, olhei no espelho e vi o reflexo da máscara de porcelana que cobria meu rosto de menino rico e retirei-a para ver o sorriso de satisfação que duraria para se desfazer. Tirei os tênis vermelhos e meu macacão jeans e coloquei meu pijama azul.
Meus pais chegariam logo.
E, no ano seguinte, quando meus pais saíram de férias de novo, uma nova babá foi contratada.
“Olá Luke. Vamos nos divertir muito. Qual seu jogo favorito?”
Autora: Janaina Lopes
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